A história do sanfoneiro Neguinho da Onça
Com o retorno do nosso site, não poderia deixar passar a oportunidade de (re)publicar as pesquisas que fiz entre 2017 e 2019 e que fazem parte do que denominei de “História & Imagem”.
Em outras palavras, é uma linha de pesquisa sobre os personagens, as famílias e os acontecimentos de valor histórico grandioso para a cidade de Colônia Leopoldina. O objetivo, desde o começo, foi contar a história leopoldinense através de pessoas, fatos e da instituição familiar, utilizando-se de imagens, de acervos de fotografias.
Do ponto de vista metodológico, o objetivo foi produzir textos mais dinâmicos e fluídos, dado o uso de relatos orais para a produção textual. Sendo assim, “História & Imagem” se constituiu em algo muito prazeroso.
Cada entrevista, cada registro fotográfico, algo importante sempre era desvelado: a historicidade de famílias e de pessoas que contribuíram e que ainda contribuem para a história e a cultura leopoldinense.
Nesse contexto, confessamos uma coisa: a emoção, em cada entrevista, foi o elemento que nos fez ter a certeza de que a nossa história é rica e que precisa ser explanada, registrada e espalhada por todos os cantos, sem qualquer sentimento de posse.
Na realidade não possuímos a História, ela não é algo que podemos nos gabar e dizer que é nossa. Pelo contrário, é ela que nos possui em seu emaranhado de fios (a visão de Homero1 estava desde sempre correta).
Pois bem, então vamos conhecer um dos principais personagens históricos da nossa cidade. Ele é um patrimônio vivo da nossa cultura. Estou falando de José Firmino da Silva, o folclórico Neguinho da Onça.
Infância
Meados dos anos 1960. Enquanto o País via os golpistas de 64 tomar a força o poder político e implementar uma ditadura que terminaria apenas em 85, na Fazenda Bom Sucesso, em Campestre, Alagoas, nascia, em 10 de maio de 64, o menino José Firmino da Silva.
Filho de um romance embalado pelos canaviais, o menino Firmino, como era chamado, não conheceu o pai. A sua mãe, Maria Caetana, sempre amável, viria mais tarde conhecer a força com que as Moiras2 tecem o destino dos humanos.
Com efeito, as estripulias destas com o nosso herói fazem com que as aventuras de Ulisses3, de Homero, sejam congêneres com as dele.
Com três meses de nascido, a Família Firmino foi morar no Engenho Onça, no território do hoje município de Novo Lino. “Banhado pelo Rio Manguaba e por fruteiras frondosas”, conforme disse o nosso herói, parecia ser adequado para a vida da família, pois oferecia trabalho para os seus membros; “trabalho no campo”, faz questão de destacar ele.
Embora o trabalho no campo exigisse esforço de toda a família, tudo corria bem, até que o pequeno Firmino pegou uma “coceira da gota”, afirmou ele em tom jocoso. A sua mãe, afeita ao trabalho para sustentar o rebento, de imediato se desesperou. Achando que o filho logo iria bater as portas de São Pedro, o entregou à mãe, Dona Arlinda Ninevina.
Na realidade, achava que a avó seria a pessoa adequada para enterrar o pequenino Firmino!
Na casa da avó, Firmino foi tratado conforme os costumes da época. E foi assim que com mel de uruçu e seguidos banhos de sabão de dosagem foi se recuperando paulatinamente. Ele ia “pegando uma cor até melhor”, mas nada de melhorar definitivamente.
O resultado é que ele ficou travado, pois “os braços e as pernas não se mexiam por nada”. Comentando a apreensão familiar da época, disse ele que a família falava “até parecia um anjo com os olhos pulados”.
E foi aí que ele consumiu, sem o devido assentimento, é claro (por sinal, quem em boas condições da cabeça daria esse assentimento? ), leite magnésio.
Essa tortura (ops…tratamento) perdurou por um ano. Ficou bom!
Curado daquela coceira (disseram a ele que foi um vento que o pegou…), o menino levava uma vida quase normal. Colhia as frutas que o lugar oferecia, brincava com os outros meninos e com as meninas e tomava muito banho de rio; pescava e pegava passarinho.
Entretanto, tinha algo de diferente naquele menino! Ele ficava, sempre no final de tarde, sentado num canto da sala escutando o rádio. É que ele já gostava dos sons que a sanfona pode produzir. “Achava aquelas músicas bonitas”, disse. A avó achava tudo aquilo muito bonitinho, mas o avô, o Sr. Romão Firmino não gostava.
Comerciante de cachaça de cabeça4, roupas e criador de porcos, bodes e cabras, sempre ouvia ‘vai estudar menino’, confessou o menino Firmino acerca da posição do avô.
A paixão pela sanfona já era grande. Certo dia, não tendo o que fazer, fez ele uma sanfona de papelão. Com os lápis da escola (sim, ele estudava, mas…) ele pintou aquela obra artesanal; desenhou os baixos; o cordão dela foi o que era usado pra embrulhar pão-doce; “tentava imitar os grandes tocadores de sanfona da época”, me alertou em nossa conversa.
A primeira sanfona
Pronto! Nascia o nosso Neguinho da Onça.
Como todos nós sabemos, mãe é mãe, né? E, assim, juntamente com o seu irmão Gonzalo, tio do menino Firmino, comprou ela, depois de muito esforço e trabalho, uma sanfona de 32 baixos. “Meu tio, ainda, tornou 1 saco de feijão e 5 contos de reis”, afirmou Neguinho da Onça.
O quão era especial aquele menino que sonhava ser sanfoneiro, pois fico imaginando o esforço que foi dispendido para se adquirir aquela primeira sanfona pra ele!
Peraê colegas…estamos indo rápidos demais nessa história!
Neguinho da Onça disse o seguinte: “Eu dormia numa rede e estudava pela manhã; certo dia, quando acordei, estava ela lá, ao meu lado, em cima de um tamborete; naquele dia não queria ir pra escola”.
Percebem o que a danada da sanfona produziu num menino com apenas 9 anos de idade? Sim, estou falando também do fato dele não querer ir mais pra escola em função da alegria produzida pelo presente. Na verdade, nem precisamos ir a Baruch Spinoza5 pra entendermos essa alegria.
Mas estou falando (percebi isso na conversa com ele) do fato do inimaginável, do fato dele ter a sua frente uma sanfona, algo que nunca iria passar pela cabeça dele aquela altura da vida. Nove anos, colegas! E em uma família em paupérrima condição econômica.
Entendem a sutileza que acabei percebendo no diálogo com ele?
Pois bem, depois disso, ele não queria ir mais estudar. Só queria tocar! Mas acabou indo naquele dia para a aula. Mas, na hora do recreio (por sinal, o melhor da escola era o recreio, pois disse o nosso Neguinho da Onça que “a gente comia uns biscoitinhos com suco”) “eu corri pra casa, só pra olhar pra sanfona”.
O peste gostava mesmo da sanfona, pois deixar de comer só para contemplá-la, só quem gosta mesmo…!
Pois bem, escando músicas pelo rádio, ele foi treinando em sua sanfona de 32 baixos. O avô sempre estava carrancudo, mas a avó o apoiava e o tio Gonzalo não deixava de incentivá-lo e, assim, “aquele menino magrelo estava tocando a sua primeira música, que foi Barra dos Coqueiros, de Azulão”, disse ele.
“Meu amor me deixou aonde eu vou parar, em Barra dos Coqueiros, lá no balanço do mar”, cantou Neguinho da Onça, enquanto a gente conversava.
Aprendendo de ouvido, ele ia progredindo no ofício. Aí, de repente, estava “tocando parabéns nos aniversários de bonecas que as meninas faziam”; mas ele queria mais! E, assim, quando se deu por si, estava tocando “Jackson do Pandeiro, Cremildo, Marinês, Elba Ramalho e outros”.
Adolescência
Nas festas pelos sítios, quando as famílias se reuniam para comemorar os batizados, os aniversários ou mesmo as datas religiosas, ele observava os outros sanfoneiros. Às vezes diziam, “menino, vem cá e dê uma palhinha aqui”. Era o que ele queria!
O menino Firmino foi mais uma vez surpreendido. É que a sua mãe, Dona Maria Caetana, acabou comprando outra sanfona para ele (uma escadaria de 80 baixos e de cor vermelha). Aquela de 32 baixos já não dava conta. Com 10 anos de idade ele já tocava muito. Era chamado para “tocar em festas de casamentos” e outras festas.
Embora os incentivos da professora Cleumice (ela chegou a fazer um acordo com ele, pois se ele aprendesse o alfabeto ganharia um carro de lata, o que acabou acontecendo) fossem fundamentais, o Zé Pretinho, como era chamado pela comunidade da Onça, não demonstrou o interesse devido à escola.
Os anos de passaram. Aos 17 anos de idade, foi se alistar. Era um estratagema do avô para que ele não prosseguisse na carreira de sanfoneiro. É que o Pretinho da Onça, como também era conhecido, tocava em tudo que era lugar. Ele acompanhava, inclusive, os circos que desciam a lona onde hoje é Novo Lino, passando, assim, semanas sem vim em casa.
“Eu só queria era tocar sanfona”, disse ele. “Foi assim que fiquei alegre quando fui dispensado do alistamento”, completou.
Ele veio pela primeira vez em Colônia Leopoldina aos 18 anos de idade. “Achava a cidade bonita, mais do que o Lino”, pugnou ele. Aos 19 anos, “Eu e meus primos Civa, que tocava belê, Zezinho, no triângulo, e Ronaldo, no pandeiro, fizemos uma apresentação na Festa de São Sebastião aqui em Colônia Leopoldina; foi em baixo desse pé de castanhola; enquanto a turma comia torrada, que era um pedacinho de pão com carne e molho, e tomava kisuke na garrafa, foi juntando gente”.
Namoro e casamento com Dona Cícera
O sanfoneiro Zé Neguinho era demais assediado pelas mulheres. Entretanto, foi a flecha disparada pela formosa Cícera Maria da Silva que o aprisionou. É que ela tinha feito um pacto com Vênus6 e com Cupido7 para “conquistar aquele sanfoneiro bonito”. Então, eles começaram a namorar.
“Com as tocadas, eu ia juntando dinheiro para o casamento; tenho eles até hoje”; foi um plano que não deu certo, pois casei e foi nem preciso gastar ele; guardei ele de recordação”.
Carreira
Aos 20 anos de idade, veio de vez para Colônia Leopoldina. “Uma das primeiras pessoas que me ajudou aqui foi o Sr. José Soares8, que era proprietário de cana. Foi ele quem me levou pra falar com o Sr. José Santana de Melo9 na casa dele, que era na época secretário da prefeitura; foi o Zé de Melo que me chamou várias vezes para tocar no Palhoção Brega e Chique10; acho que foi em 88 que isso aconteceu”.
Por sinal, o nome Neguinho da Onça tem como inventor justamente o ex-prefeito Zé de Melo, pois, “como ele era brincalhão, ficava me perguntando por que as pessoas me chamavam de Zé Neguinho; aí ele disse que o meu nome seria Neguinho da Onça”, disse o entrevistado.
Neguinho da Onça ainda é hoje um exímio sanfoneiro, um dos melhores que temos. Nos anos 90, fez parte da Banda Maria Fumaça e da Banda Fogo da Paixão, ambas da cidade de Maceió.
Em 2015, ainda fez parte da Banda Valdir e os Amantes do Nordeste. Por muito tempo fez sucesso no famoso Forró da Véia11, organizado pelo folclórico Bertozo12, que ficava do outro lado da ponte, em Pernambuco (outro personagem da nossa história que precisa ser resgatado do limbo).
José Firmino da Silva é, entre filhos e filhas, pai de 12, sendo seis vivos (as), que são os (as) seguintes: João Pedro Firmino da Silva, Daiana Maria Firmino da Silva, Elisângela Firmino da Silva, Eduardo Aparecido Firmino da Silva, Erinaldo Firmino da Silva e Iara Firmino da Silva.
Finalmente, nesta reedição de “História & Imagem”, ficamos sabendo um pouco da história do nosso Neguinho da Onça, baluarte da nossa cultura musical e que ainda anima a nossa sociedade com a sua sanfona.
- Um dos grandes poetas gregos da Antiguidade. Foi o autor da Ilíada e Odisseia. ↩︎
- As três deusas gregas que fabricavam, teciam e cortavam os destinos dos seres humanos. ↩︎
- Rei de Ítaca, foi um dos personagens homéricos da Odisseia. Foi o responsável pela ideia do Cavalo de Troia, que fez com que os gregos vencessem a guerra contra os troianos. ↩︎
- Tipo de cachaça destilada com grande teor alcoólico e com grande valor artesanal e comercial. ↩︎
- Filósofo holandês do século XVII. Foi um dos grandes pensadores racionalistas da modernidade. ↩︎
- Deus da beleza e do amor na mitologia romana. ↩︎
- Filho da deusa Vênus e do deus Marte, Cupido era o deus do amor. Era representado por um arco e flecha, pronto a disparar nos corações dos seres humanos. ↩︎
- Patriarca de uma das famílias tradicionais do município de Colônia Leopoldina, foi um dos grandes plantadores de cana de açúcar da região. ↩︎
- Natural do estado da Bahia, foi gerente da Usina Taquara e depois, indicado pelo usineiro José Luiz Lessa, se tornou, entre os anos de 1989 a 1990, prefeito de Colônia Leopoldina. ↩︎
- Palhoção, onde fica atualmente a Praça do Centenário, onde as festas juninas eram comemoradas. ↩︎
- Espaço de congraçamento popular, onde, nos finais de semana, um trio pé de serra animava a noite do público masculino. Na mentalidade da juventude masculina da época, se tratava de um lugar propício ao ingresso no mundo das práticas sexuais. ↩︎
- Proprietário do Forró da Véia, O Sr. Bertozo, que também patrocinava jogos de azar, além de fabricar picolé, gerenciou um dos principais ambientes de congraçamento popular nas décadas de 1980 e 1990. ↩︎
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