Neco da Padaria de Zé Carneiro, o boêmio dos bordões
Ao tomar os conceitos da fenomenologia1 como referenciais da narrativa histórica, o historiador estará, necessariamente, vinculado a produção de conhecimento a partir de certo princípio, que é o fenômeno.
Pois bem, História & Imagem tem como fundamento a construção de narrativas a partir do fenômeno, vez que os objetos da narrativa – sujeitos, pessoas, contextos, imagens, etc – são fenômenos, segundo a perspectiva fenomenológica.
Nesta edição, o editorial traz ao público, a partir da consideração fenomenológica dos sujeitos históricos descritos no texto, a narrativa, sobretudo, do inesquecível “Neco”, que trabalhou a vida toda na Padaria de Zé Carneiro2.
O vínculo de trabalho com a padaria foi tão forte, que houve uma simbiose entre o seu nome e a panificadora, ficando ele conhecido dessa forma “Neco da Padaria Zé Carneiro”.
Neste contexto, sente no sofá, deite ou mesmo arraste um tamborete e acompanhe a historicidade de “Neco da Padaria Zé Carneiro”.
E antecipo as minhas impressões do nosso personagem. Seguem.
Desde tenra idade um trabalhador!
Um excelente pai!
Um exímio esposo!
Um primor de amigo!
Um dos últimos nietzscheanos leopoldinenses!
Nascimento
Com certeza, a excelência foi a maior característica, a virtú suprême de Manoel José da Silva, o nosso “Neco Padeiro”, o famoso ‘Neco da Padaria Zé Carneiro’. Ele nasceu na zona rural do município de Novo Lino, num sítio chamado Estreito, em 1935.
O seu pai, o Sr. Paulino José da Silva, trabalhou, juntamente com a Sra. Maria Jarmelina da Silva, em atividades campesinas. “Eles cuidavam da roça no campo e viviam da plantação de macaxeira e da batata e de outras coisas”, confidenciou a Sra. Edna Lúcia, viúva de Neco.
Dona Lúcia, cujo nome é Edna Lúcia da Silva, nasceu no município de Colônia Leopoldina, no dia 7 de novembro de 1946. Teve a infância marcada pelo trabalho, pois desde cedo ajudava o pai, o Sr. André Antônio da Silva, e a mãe, a Sra. Maria da Conceição, na produção e comercialização de produtos para cavalos.
A Dona Lúcia se regozija ao mencionar esta época, pois “foi com este trabalho simples e honesto que os meus pais criaram eu e a minha irmã”, disse ela.
— Nós vendíamos as mercadorias nas feiras livres da região —, completou Dona Lúcia, me oferecendo água.
Carinhosamente Dona Lúcia é conhecida por “Lúcia do Banco do Brasil”. É que ela trabalhou por muito tempo na única agência do Banco do Brasil, em Colônia Leopoldina; mas antes ela tinha sido funcionária, também em Colônia Leopoldina, do Banco Econômico.
Trabalho
Neco começou a trabalhar na Padaria de Zé Carneiro aos 14 anos de idade. A Padaria de Zé Carneiro é, ainda hoje, uma das principais panificadoras da cidade. E foi lá que ele sempre trabalhou.
Existiu uma confluência tão forte entre ele e a Padaria Zé Carneiro, uma simbiose quase mística, que o nome da padaria ficou como quase um sobrenome do nosso herói – Neco da Padaria Zé Carneiro.
A Padaria de Zé Carneiro, que fica há 200 metros da minha residência, foi durante a infância e a adolescência o point da meninada da Rua do Campo. A noite todos os meninos da nossa rua corriam pra lá, onde as fofocas e as brincadeiras, além das paqueras, eram os assuntos.
Foi ali, embaixo da marquise daquele estabelecimento que a inocência infantil começava a dar lugar ao mundo dos adultos. E foi nesse ambiente que tive o prazer de conhecer Seu Neco.
Foi ali, na frente da padaria, no Bar de Creuza, que ingressei no universo dos licores, certa vez acompanhado por Neco, que no tempo de cajarana3, andada com os bolsos cheios.
Casamento, filhos e filhas
O casal foi vítima das primeiras atrações feromônicas4 ainda na antiga Rua do Alto. Uma irmã de Dona Lúcia morava bem em frente a Padaria de Zé Carneiro e “foi quando começou um olhar para o outro”, de acordo com que ela me falou.
— A casa da mãe de Zé Carneiro era também onde a gente conversava; mas era coisa rápida, pois eu tinha muita vergonha —, explicou Dona Lúcia.
Na realidade, tanto Dona Lúcia quanto o Sr. Neco haviam já sido flechados por Eros.
Após oito meses de namoro e de planejamento, Neco e Dona Lúcia se casaram na Igreja Matriz Nossa Senhora do Carmo, em Colônia Leopoldina, no ano de 1960.
O casal fincou morada, primeiramente, numa casa alugada a Sebastião Veloso5 e que hoje pertence ao Sr. Zezinho. Estamos nos primeiros anos de 1960 e, se os EUA cortaram, em 1961, as relações diplomáticas com Cuba, o Sr. Neco e Dona Lúcia se encontravam completamente apaixonados.
Entre eles nada de frieza, mas tudo seria quente!
Por dois anos e oito meses o casal ali residiu, foi quando compraram o imóvel que, até hoje, Dona Lúcia reside com a família. Vênus6 começou a influir na vida do casal e, assim, nasceram: Severino Ramos da Silva (Ivo), Manoel José da Silva Filho (Nel), José Romildo da Silva (Mida), José Orlando da Silva (Lando), Luciana Maria da Silva, in memorian (Ninha), Carlos Alberto da Silva (Cal), Carlos Leandro da Silva (Léo) e Luciege Maria da Silva.
Dona Lúcia, que exercia as atividades domésticas em sintonia aos parâmetros institucionais da época, começou a ajudar o esposo na renda familiar e, assim, passou a costurar por encomenda e a lavar roupas de famílias.
— Eu lavava as roupas de muita gente aqui de Colônia, como de Dona Odecilda7; mas também trabalhei vendendo feijão e bolacha no mercado público — me informou Dona Lúcia.
Entretanto, os anos foram se sucedendo e Neco e Dona Lúcia estabeleceram diversas relações sociais com muitas pessoas. Eram frequentadores dos principais espaços sociais e momentos cerimoniais da cidade – aqueles momentos de congraçamento social, conforme Roberto DaMatta bem nos explicou – como as festividades realizadas no Club UDAL8, no antigo Mercado Público9 e na atual Prefeitura10.
— São João era na Rua do Campo; era na casa de Dona Zefinha Moraes11, quando Moacir12 tocava até tarde — disse Dona Lúcia.
A boemia e os bordões
Não há dúvida de que Neco representou muito bem – para não dizer com excelência – os boêmios, “sendo um dos últimos”, confessou-me um amigo dele. Não tenho certeza, mas acredito que o inarrável Neco da Padaria Zé Carneiro levou a sério o que falou o flamengo Erasmo de Roterdã13, em seu texto “Elogio da Loucura”.
Neco foi autor de famosos bordões, que até hoje povoam a memória daqueles que conviveram com ele e que ainda não foram convidados por Tânato14 à visitar a sua morada.
Todos se recordam do famoso “volê!” ou do “fazer o quê!” ou ainda do “deste mesmo jeitinho!”, para indicar uma sátira, uma aceitação e uma confirmação situacional, respectivamente.
Ele foi um homem que andava manso – ele andava tão devagar, que o imagino sendo o oposto da velocidade da luz. Nunca foi de arrumar confusão; pelo contrário, era apaziguador.
Adepto, ao que me parece, das regras de Baco15, Neco gostava muito de se divertir – ele soube bem ser o que tem de melhor de Nietzsche16. Com certeza, nele a vontade de potência era potente mesmo – potente até demais, podem alguns se posicionar!
O que podemos e devemos – quem sabe seja um imperativo categórico – é aprender com “Neco da Padaria Zé Carneiro”, de que a vida é pra ser vivida; nada de estarmos patrulhando a nossa própria vida e o que é pior, a vida das outras pessoas.
Lições à posteridade
Vamos é viver bem, se alegrar e se relacionar com as pessoas de forma amigável e proveitosa. E se a vida trouxer problemas – e é bem provável que apareçam – grite para a existência, e bem alto, o famoso bordão de “Neco da Padaria Zé Carneiro”, ou famoso “volê!”, e siga vivendo.
Só tenho a agradecer a Dona Lúcia pelo carinho que me recebeu em sua residência, assim como aos Srs. Nel e Léo pelas fotografias. Agradeço também pelo fato da família oferecer ao povo leopoldinense a oportunidade de se conhecer um pouco mais sobre o inolvidável “Neco da Padaria Zé Carneiro”.
*Texto originalmente publicado no dia 17 de novembro de 2018.
- A fenomenologia é uma das principais correntes filosóficas da contemporaneidade e que tem como objeto de estudo o fenômeno, ou aquilo que aparece à consciência. Edmund Husserl foi quem sistematizou o pensamento fenomenológico, que se expandiu e influenciou diversos ramos do conhecimento e da cultura. ↩︎
- A Padaria de Zé Carneiro é uma das mais antigas padarias de Colônia Leopoldina. Ainda hoje produz pães e bolachas. ↩︎
- Frutas que é originária do norte do Brasil. Nos fundos da Padaria de Zé Carneiro até hoje existe um pé da fruta. No seu tempo, Neco recolhia nos bolsos a fruta, que servia de tira-gosto da cachaça. ↩︎
- A biologia afirma que os feromônios, substâncias químicas, são os responsáveis pela atração sexual nos seres humanos, agindo no nível da inconsciência. ↩︎
- Sebastião Veloso foi um dos mais ricos comerciantes de Colônia Leopoldina. Por muitos anos, ele foi um dos principais vendedores de alimentos da cidade, além de fornecedor de gêneros alimentício na região. ↩︎
- Vênus foi a deusa da fertilidade e do sexo na mitologia romana. ↩︎
- Dona Edecilda foi uma das mais importantes personalidades do seu tempo. Ensinou culinária para inúmeras meninas por muito tempo. Trabalhou também com questões sociais na Prefeitura de Colônia Leopoldina. ↩︎
- O Club UDAL (Associação da União Desportista dos Amigos de Leopoldina) foi fundado na década de 1970 e até os dias de hoje se caracteriza como espaço de festividades e um dos principais ambientes de congraçamento popular. ↩︎
- O antigo Mercado Público ficava no terreno na frente do antigo Supermercado de Severino Rocha. Nas festividade de janeiro, quando se comemora o Padroeiro São Sebastião, no antigo Mercado Público vários sanfoneiros alegravam a noite. ↩︎
- Antigamente a sede do poder executivo municipal servia também para os bailes. A arquitetura da época beneficiava esse tipo de evento, dado que era um vão, sem salas e corredores, como é atualmente. ↩︎
- Dona Zefinha Moraes foi uma produtora da cultura que viveu por muitas décadas na Rua do Campo. Ela foi sogra do meu Tio Zé Neguinho. Com as festividades juninas, ela intimava os meninos e as meninas para buscarem bambus no Rio Jacuípe, que serviam para ornamentar o tradicional Palhoção da Rua do Campo. ↩︎
- Moacir foi um dos mais importantes sanfoneiros da história leopoldinense, que fazia alegria da população de diversas ruas durante os festejos juninos. ↩︎
- Filósofo holandês do século XVI. ↩︎
- Conforme a mitologia grega, Tânato era o deus da morte. ↩︎
- Ainda segundo a mitologia grega, foi o deus do vinho, da folia e da alegria. ↩︎
- Filósofo alemão que se destacou por sua crítica ao cristianismo e à moral ocidental. ↩︎
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